Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
A Evolução Tecnológica Na Democratização Dos Meios De Produção E Nas Formas De Ver Cinema
Jaime Sérgio Oliveira Neves
Jaime Sérgio Oliveira Neves
A Evolução Tecnológica Na Democratização Dos Meios De Produção E Nas Formas De Ver Cinema
La evolución tecnológica en la democratización de los medios de producción y en las formas de ver cine
The technological development in the democratization of the means of production and in the ways to see cinema
ICONO 14, Revista de comunicación y tecnologías emergentes, vol. 17, núm. 2, pp. 109-129, 2019
Asociación científica ICONO 14
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Ao longo de mais de cem anos de história, o percurso da arte cinematográfica tem sido acompanhado por inúmeros avanços tecnológicos que têm vindo a proporcionar aos cineastas um cada vez mais infindável número de recursos que visam potenciar o acto da criação fílmica. A chegada da tecnologia digital ao cinema representa um marco profundamente impactante para a História da Sétima Arte. O digital democratizou o acto de fazer cinema ao torná-lo mais acessível e imediato sem, no entanto, por si só, ser garante de incremento qualitativo. Cinema é expressão e tecnologia é ciência. Consciente desta dicotomia, em diversos momentos, ao longo de mais de um século de existência, o cinema soube contornar com sucesso carências técnicas (e económicas) sem nunca perder, no entanto, a sua capacidade expressiva e estética. Mas tal como a acto de fazer cinema tem vindo a evoluir, também o acto de o visionar tem vindo a sofrer profundas mutações. Pela análise de vários dados relativos a hábitos de consumo, constataremos neste escrito que a clássica escura sala de cinema tem vindo nos últimos anos a perder protagonismo. As novas plataformas de videostreaming apresentam-se na actualidade vigorosas, francamente sedutoras e em claro crescendo na capacidade de seduzir um público cada vez mais adepto de novas tecnologias e que parece não identificar na clássica sala de cinema uma mais valia, por exemplo, no potenciar de atmosferas facilitadoras às funções expressivas e estéticas do cinema.

Palavras-chave:CinemaCinema, Ciência Ciência, Tecnologia Tecnologia, Digital Digital, Atmosfera Fílmica Atmosfera Fílmica, Videostreaming Videostreaming.

Resumen: A lo largo de más de cien años de historia, el camino del arte cinematográfico ha sido seguido por numerosos avances tecnológicos que han permitido a los cineastas un número cada vez mayor de recursos que tienen como objetivo mejorar la producción cinematográfica. La aparición de la tecnología digital en el cine representa un hito profundamente significativo para la Historia del Cine. La era digital democratizó el hecho de hacer el cine haciéndolo más accesible e inminente, sin embargo, no siendo una garantía de mejora cualitativa en sí misma. El cine es una expresión y la tecnología es una ciencia. Consciente de esta dicotomía, en diferentes puntos, durante más de un siglo, el cine ha podido superar con éxito las necesidades técnicas (y económicas) sin perder, sin embargo, su capacidad estética y significativa. Pero al igual que el acto de hacer cine se ha desarrollado, el acto de visualizarlo también ha experimentado cambios significativos. Al analizar varios datos sobre los hábitos de consumo, determinaremos en este ensayo escrito que los cines oscuros clásicos han estado perdiendo su papel en los últimos años. Las plataformas recientes de transmisión de video son actualmente más fuertes, bastante atractivas y con un claro crecimiento en la capacidad de seducir a un público cada vez más aficionado a las nuevas tecnologías y eso no parece determinar un valor agregado en las salas de cine tradicionales, por ejemplo, como mejora Ambientes favorables a los roles expresivos y estéticos del cine.

Palabras clave: Cine, Ciencia, Tecnología, Digital, Atmósfera cinematográfica, Transmisión de video.

Abstract: Over more than one hundred years of history, the cinematic art path has been followed by numerous technological advances that have been enabled filmmakers a more and more endless number of resources that aim to enhance the film production. The emergence of digital technology to the cinema represents a deeply significant landmark for the Cinema History. The digital era democratized the act of making cinema by making it more accessible and imminent, however, not being a guarantee of qualitative improvement by itself. Cinema is an expression and Technology is a science. Conscious of this dichotomy, at different points, for more than a century, cinema has been able to successfully overcome technical (and economic) needs without losing, nevertheless, its significant and aesthetic capacity. But just as the act of making cinema has been developing, the act of envisioning it has also been undergoing significant changes. By analyzing several data on consumption habits, we will determine in this written essay that the classic dark movie theaters have been losing its role in recent years. The recent platforms of video streaming are currently stronger, fairly attractive and clearly growing in the ability to seduce an audience more and more fan of the new technologies and that does not seem to determine an added value in the traditional movie theaters for example, as enhancing favorable atmospheres to the cinema´s expressive and aesthetic roles.

Keywords: Cinema, Science, Technology, Digital, Film Atmosphere, Video streaming.

Carátula del artículo

Monográfico

A Evolução Tecnológica Na Democratização Dos Meios De Produção E Nas Formas De Ver Cinema

La evolución tecnológica en la democratización de los medios de producción y en las formas de ver cine

The technological development in the democratization of the means of production and in the ways to see cinema

Jaime Sérgio Oliveira Neves
(Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa), Portugal
ICONO 14, Revista de comunicación y tecnologías emergentes, vol. 17, núm. 2, pp. 109-129, 2019
Asociación científica ICONO 14

Recepção: 04 Dezembro 2018

Revised: 05 Abril 2019

Publicado: 01 Julho 2019

Para citar este artigo:

Neves, J. (2019). A Evolução Tecnológica Na Democratização Dos Meios De Produção E Nas Formas De Ver Cinema, Icono 14, 17 (2), 109-129. doi: 10.7195/ri14.v17i2.1279

1. Introduction

O acelerado ritmo evolutivo da tecnologia tem vindo a acompanhar desde sempre a História do Cinema. Na última década do século XX, a chegada do digital conduziu áquilo que, genericamente se considera, a grande revolução tecnológica do panorama audiovisual e que conduziu a uma democratização crescente dos meios de produção. Produzir conteúdos cinematográficos passou a exigir menos aparato tecnológico e por via disso, democratizou-se ao tornar-se tendencialmente mais acessível. Posteriormente, diversificaram-se as formas de difusão e a clássica sala escura, habitat natural e privilegiado do Cinema durante décadas, perdeu exclusividade. O Cinema que já surgia na televisão desde meados do século passado passou também a percorrer os canais digitais da internet e passou a ocupar um lugar de destaque numa imensa panóplia de dispositivos móveis com sempre novas e cada vez mais inovadoras e sofisticadas capacidades multimédia. Outrora contempladas exclusivamente em sessões colectivas, as imagens em movimento passaram a estar também acessíveis a uma contemplação individual.

2. Metodologia

Para a escrita deste trabalho foi levada a cabo uma metodologia fortemente assente numa revisão da literatura científica relativa aos factos mais marcantes da história do cinema, procurando centralizar o foco nos momentos da história onde, em consequência de crises políticas, económicas e/ou sociais o cinema se debateu com naturais e evidentes carências, nomeadamente do foro tecnológico. Elegeram-se dois relevantes movimentos da história do cinema, o Neo-Realismo italiano e a Nouvelle-Vague francesa para, a partir da análise dos vários contextos que conduziram ao seu aparecimento, desenvolvimento e mediatização, se procurar chegar a algum entendimento sobre a forma como a tecnologia, ou a carência dela, pode de alguma forma conduzir a uma certa superação do ponto de vista criativo e, por consequência, de índole artístico na produção de obras cinematográficas.

A partir de uma perspectiva fortemente empírica que tende a aceitar que o cinema tem, ao longo das décadas, vindo a sofrer mutações de várias ordens, procurou-se neste trabalho analisar os comportamentos dos espectadores nomeadamente, e sobretudo, na forma como estes se relacionam com o meio e a importância que lhe atribuem ou não. Para tal, analisou-se toda uma série de dados disponíveis e que dizem respeito aos novos hábitos de consumo de cinema, quer na clássica e primogénita sala escura, quer através das novas plataformas digitais de videostreaming como Netflix, Nplay, FoxPlay ou Amazon Prime Video. Através do confronto dos dados analisados procurou extrair-se uma série de conclusões relativas ao impacto das novas tecnologias na forma de ver cinema.

3. Desenvolvimento

A História do Cinema fez-se, e continua ainda a fazer-se, ano após ano, década após década, pelo trilhar de um percurso evolutivo e aventureiro repleto de engenhosas invenções tecnológicas, de personalidades inspiradoras, arrojadas, inventivas, curiosas e, sobretudo, profundamente criativas. Décadas de ambição, de maravilhosas visões, de atribuladas, e muitas vezes falhadas, tentativas de aprisionar o momento então presente, através de imagens que se complementam e ganham potencial, também narrativo, quando se conjugam com o som. Um percurso de séculos, pela pré-histórica arqueologia das imagens em movimentos ambicionando alcançar uma nova forma de arte, a sétima como haveria de ser classificada. Uma nova forma de arte que haveria de sintetizar em si todas as outras artes e que, em muito ultrapassaria, o mero objectivo narrativo pela interacção de vários contributos linguísticos, iconográficos, visuais, técnicos e científicos. Um percurso até ao cinema, tal como hoje o conhecemos, cujo ponto de partida, podemos arriscar, remonta primeiro ao maravilhoso espectáculo das sombras do teatro oriental praticado na China há mais de 2000 anos e depois à lanterna mágica e ao princípio da câmara escura que já era conhecido desde a antiguidade.

Inventada no século XVII, a lanterna mágica, constituída por uma câmara escura e um jogo de lentes já em muito se assemelhava à cinematografia pela ilusão de movimento que proporcionava. Foi dada a conhecer em 1643 e descrita em 1671 pelo padre jesuíta Athanasius Kircher, seu inventor, no tratado Ars Magna Lucis et Umbrae (2ª edição) como “uma pequena máquina que é usada para ver na parede branca diferentes espectros e monstros horríveis, para que aqueles que não conhecem o segredo acreditem que esta é a arte mágica.”1 (Toulet, 1988, p. 57) Assumidamente uma máquina visionária, a lanterna mágica de Kircher, serviu de base para uma enorme quantidade de novos modelos que foram surgindo já ao longo do século XVIII, predispostos quer para o entretenimento doméstico quer para o espectáculo.

“Um entretenimento agradável e ao mesmo tempo instrutivo para os longos serões de inverno. Que profunda lembrança deixou na nossa infância a aparição de quem mostrava a lanterna mágica!... E quando o espectáculo tão desejado nos era oferecido, quando uma grande tela branca era estendida sobre a parede da sala, com que ardor seguíamos, no grande círculo luminoso, no meio da escuridão da sala, as imagens que o homem nos explicava no seu estilo naif.” (Fourtier, 1889, p. 10)

Um “entretenimento agradável” e sedutor capaz de envolver o espectador na sua teia, seja ela narrativa ou puramente estética. Um “espectáculo tão desejado” que haveria muitos anos mais tarde de se transformar numa grande indústria movendo em todo o mundo fortunas financeiras, criando portentosos magnatas do capital e gigantescos estúdios de produção de estrelas da representação, envolvidas no glamour da passadeira vermelha. Um espectáculo e ao mesmo tempo uma nova forma de arte capaz de impor ao espectador ou prisioneiro, como refere o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, uma aparente fracção de realidade que este aceita ao deixar-se transportar emotivamente pela magia das imagens em movimento, outrora sombras, conforme metaforiza, na alegoria da caverna, o filósofo grego Platão.

“A alegoria da caverna transforma-se num grande dispositivo teatral ou cinematográfico, numa bela máquina de cenografia onde o metteur en scène Platão acerta todos os detalhes do cenário e intervém incessantemente para que o papel do prisioneiro se desenrole como deve ser, para que o discípulo Glauco seja convencido e seduzido pelo fundamento do discurso do mestre guardião da pertinência das analogias. Quando a sessão de cinema terminar, o prisioneiro, o discípulo e nós mesmos ficamos cegos por termos contemplado não mais as imagens da caverna, mas a imagem desse Deus-Pai-Sol-Real.” (Santos, 1981, pp. 192 - 193)

Após um longo percurso de inovações técnicas entre a óptica e a mecânica, trilhando um percurso pela construção de uma cinematografia, 28 de Dezembro de 1895 é a data que, oficialmente e com o reconhecimento de muitos, marca o início do cinema. Assim, depois de vários anos de experiências, os irmãos Auguste e Louis Lumière apresentaram em 1895 no Grand Café, em Paris, o cinematógrafo e marcaram assim o início de uma nova era no campo da arte. As imagens até aqui estáticas ganhavam agora uma nova vida com a ilusão do movimento e passariam a exercer uma força atractiva nos espectadores que as observavam. Ainda que mudo e a preto e branco, o que é certo é que nascia assim o cinema.

A partir daqui vários nomes haveriam de perseguir o grande objectivo de maximizar o potencial da criação dos Irmãos Lumiére, quer através de aperfeiçoamentos técnicos quer através de inovações ao nível do conteúdo.

Os primeiros anos do cinema foram, no entanto, anos de fortes limitações de ordem técnica apesar do esforço criativo de muitos pioneiros. Mais de vinte anos depois da projecção no Grand Café, em Paris, o cinema continuava mudo e a preto e branco apesar dos vários, mas muito ténues avanços, no encalço quer de um cinema sonoro, quer de um cinema a cores.

Em 1927, a Warner Brothers inicia uma revolução com o filme The Jazz Singer, realizado por Alan Crosland e protagonizado por Al Jolson. Um musical que pela primeira vez na história do cinema possuía alguns diálogos e cantigas aliados a partes totalmente sem som. Aquando da estreia, The Jazz Singer provocou êxtase e perplexão junto do público que, descrente na veracidade da inovação, procurou a habitual orquestra e o artista que cantava nos espaços mais recônditos do edifício, crendo tratar-se de uma mentira e procurando pôr termo a uma farsa que depois se provou ser efectivamente verdade.

Em 1928, também a Warner Brothers conclui a revolução sonora com o filme The Lights of New York - o primeiro filme com som totalmente sincronizado. A partir daqui a transição do cinema mudo para o cinema sonoro faz-se com extrema rapidez que mesmo os filmes lançados entre 1928 e 1929 e que tinham iniciado o seu processo de produção enquanto filmes mudos, foram sonorizados posteriormente para se adaptarem à nova realidade que emergia. A chegada do sonoro ao cinema marca uma verdadeira ruptura com os métodos de produção que até aqui vigoravam. Uma ruptura, para muitos, demasiado radical. A indústria do cinema, aparentemente, não se encontraria preparada para tal revolução e muitas produtoras faliram e muitas outras passaram por grandes dificuldades de adaptação ao desafio que então se impunha. De igual forma, muitos actores terminaram neste período as suas carreiras por dificuldades de adaptação ao sonoro enquanto outros davam os primeiros passos e marcavam a sua estreia no cinema. Salvaguardando as excepções de muito poucos, entre eles Charles Chaplin e Buster Keaton que teimosamente resistiram à introdução do som, o cinema haveria de, a partir deste momento, não mais voltar a ser mudo. A imagem passou a ter o som como aliado e o cinema sonoro haveria de se tornar uma realidade evidente até ao tempo presente.

O final dos anos 20 do século XX fica, como vimos, marcado pela primeira e mais radical revolução tecnológica da história do cinema. O fascínio pelo som torna o cinema cada vez mais um espectáculo de massas que cativa um público cada vez mais ávido de novidade. Mas a evolução tecnológica não haveria de ficar por aqui.

Os anos 30 trouxeram a cor ao cinema. A monocromia que então imperava constituía a grande frustração dos pioneiros do cinema. A introdução da cor haveria de estimular, mais ainda, a curiosidade de um público que só há pouco mais de três décadas havia sido confrontado com o grande espectáculo das imagens em movimento. Em 1935 surge o tão aguardado Becky Sharp, realizado pelo americano Rouben Mamoulian – o primeiro filme a cores. Baseado no romance satírico Vanity Fair (1847 – 1848) de William Makepeace Thackeray e na peça Becky Sharp de Langdon Mitchell, a longa-metragem Becky Sharp apresenta ao público uma Inglaterra vitoriana, onde a actriz Miriam Hopkins dá vida à personagem Becky Sharp, uma oportunista que manipulando as pessoas, tudo faz para casar com um homem rico e ascender socialmente. Miriam Hopkins haveria de receber uma nomeação para o Óscar de melhor actriz nesse ano, pelo seu trabalho neste filme de Rouben Mamouliam.

A ambição de introduzir a cor nas imagens em movimento já nos primórdios do cinema se manifestava. A urgência era de tal ordem que, tanto os pioneiros irmãos Lumière como Thomas Edison, haveriam de experimentar o artesanal processo de pintura manual, quadro a quadro, da película. Logo em 1895, quando se davam os primeiros passos no cinema, Thomas Edison ousou registar Anna Belle Serpentine Dance, um pequeno filme de poucos segundos, pintando-o à mão. Quatro anos depois, em 1899, também os irmãos Lumière enveredavam por semelhante processo ao registar Serpentine Dance.

A procura de mais e novas formas de surpreender e cativar o espectador haveriam de conhecer o novo fôlego com o advento do digital que veio proporcionar aquilo que sumariamente podemos caracterizar como novas formas de fazer cinema. Pelos novos e mais criativos recursos que trouxe, o digital haveria de abrir caminhos a novas estéticas e novas praxis fílmicas. Novos recursos, mais acessíveis e materialmente muito menos volumosos e dispendiosos, haveriam de conduzir a uma espécie de democratização do modo de fazer cinema. A internet, que entretanto passou a fazer parte do dia a dia de qualquer individuo, acabaria também por se manifestar como uma notável, sempre disponível e gratuita forma de formação técnica que, ainda que à distância, veio, em inúmeros casos, substituir ou pelo menos complementar, as clássicas formas de transmissão de conhecimentos assentes nas clássicas fórmulas académicas.

Mas será que os mais e melhores recursos tecnológicos disponibilizados pelo digital são garantia de uma artisticamente mais evoluída forma de fazer cinema? Torna-se imperativo neste ponto diferenciar claramente os conceitos de tecnologia e de arte. São contextos que, podendo e devendo complementar-se, apresentam-se contudo em patamares claramente distintos uma vez que a tecnologia, ao contrário da arte não é uma expressão mas sim, algo alicerçado ao domínio da ciência.

Através da análise da já longa História do Cinema, podemos afirmar que, mesmo em momentos de claro défice tecnológico, quase sempre por via de crises económicas, o cinema não deixou de se apresentar como uma arte no seu todo. Aliás, podemos até concretizar que as carências tecnológicas acabaram mesmo por potenciar novas formas expressivas no cinema. Analise-se, por exemplo, o contexto económico e, por consequência, de carência tecnológica, em que surgiu o Neo-Realismo italiano.

A 2ª Guerra Mundial, que conduziu a Itália a uma situação de emergência, foi cenário propício para o nascimento do Neo-Realismo, movimento cinematográfico assente numa visão sóbria, com características quase documentais e totalmente avessa a uma aproximação ao domínio de cinema espectáculo. Um movimento onde, de uma extensa lista, se destacaram realizadores e filmes como Roberto Rossellini (Roma Cidade Aberta, 1945 e Paisà, 1946), Vittorio de Sica (Ladrões de Bicicletas, 1948 e Umberto D, 1952) e Luchino Visconti (Obsessão, 1943 e A Terra Treme, 1948). Surgindo no final da primeira metade dos anos 40, coincidindo com o final da guerra e consequente queda de Benito Mussolini, o Neo-Realismo italiano apresentava-se disponível a levar para o ecrã questões de natureza social que traziam à luz do dia a dura realidade que pairava em Itália. Um cinema leve, com muito poucos artifícios de ordem técnica, que privilegiava o plano-sequência e onde desfilavam actores amadores, gente real, de carne e osso. Um cinema que privilegiava o contacto directo com a vida, sem grandes esquemas pré-estabelecidos e usufruindo da rude e incisiva riqueza visual dos exteriores. Um cinema que não se apoiou na (na altura) tão economicamente dispendiosa cor mas sim no muito mais acessível preto e branco para transmitir emoções, perseguindo aquilo que poderemos chamar de cinema social, de muito baixo orçamento, suportado numa fotografia que conduzia o espectador a uma atmosfera sensível, crua e, que confiava na sua descodificação ainda que, ambicionando a sua empatia e solidariedade.

O cinema Neo-Realista italiano poderia então ser resumidamente classificado como um cinema nascido num período de enormes carências económicas e consequentemente técnicas, despido de artifícios, concreto, claro, objectivo e visualmente cru onde a representação da realidade é substituída pela própria realidade captada pela câmara, quase sempre com som directo e em absoluto contacto próximo com a vida.

Os exemplos não se ficam pelo Neo-Realismo italiano. Também a Nouvelle-Vague francesa surge num período economicamente debilitado onde ouve necessidade de colmatar carências técnicas para atingir o fim expressivo do cinema enquanto forma de arte.

Com a década de 50 a chegar ao fim e com os anos 60 já próximos, em França, surgia a Nouvelle Vague. Por esta altura, em França vivia-se um clima de forte instabilidade social onde os movimentos estudantis, num ambiente de proporções revolucionárias, reclamavam protagonismo através de manifestações e greves que mais tarde haveriam de contaminar e envolver outras áreas da sociedade francesa, ultrapassando barreiras classicistas, culturais ou étnicas. Um ambiente contestatário que haveria de conduzir a uma nova e revitalizadora forma de fazer cinema, que se manifestava pouco sensível aos métodos de filmagens convencionais, que tal como no Neo-Realismo italiano privilegiava o acto de filmar na rua, com câmaras portáteis, som directo, equipas pequenas, muito improviso e orçamentos muito baixos. Uma nova vaga de jovens que amadureceram numa Europa pós-guerra, massificada e intoxicada por imagens, quer de campanhas publicitárias, de televisão ou mesmo de cinema. Uma nova geração de jovens realizadores formada por nomes como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Éric Rohmer, Claude Chabrol, Alexandre Astruc, Pierre Kast e Jacques Rivette, todos críticos dos Cahiers du Cinéma, sensíveis a temáticas intelectualmente mais evoluídas, fortemente influenciados pelos textos de Karl Marx e de Balzac, que assimilavam as características e estilos da Pop Art, que admiravam os realizadores americanos capazes de contornar o sistema instituído, que foram seduzidos pelo Neo-Realismo italiano e que viam na figura de André Bazin uma referência incontornável. Amantes apaixonados e confessos por cinema, estes jovens dedicavam-se a horas de acesa e produtiva (por também formativa) discussão fílmica na Cinemateca Francesa, em cineclubes ou mesmo nos escritórios dos Cahiers du Cinéma. Jean-Luc Godard haveria de afirmar em entrevista: “O que a Nouvelle Vague trouxe? (…) Trouxemos o amor pelo cinema, o que não existia antes…” (Bergala, Daney, & Toubiana, 1986, pp. 69 - 70). Nos seus filmes, os jovens da Nouvelle Vague, abordavam temas do quotidiano, rejeitavam guiões previamente elaborados e muito rígidos, antes optavam por construir o guião à medida que iam rodando, usavam frequentemente o plano sequência, não careciam de um sistema de beldades nem de heroicas personagens fortes, ao invés colocavam em primeiro plano personagens marginais contrariando a fotogenia que era importada em bobines dos Estados Unidos da América. A propósito desta tendência anti-heróis, François Truffaut afirmou em jeito de piada: “Com a tendência que eu tenho para os anti-heróis e as histórias de amor agridoce, sinto que seria capaz de fazer o primeiro filme de James Bond que perderia dinheiro. Alguém gostaria de estar envolvido nisto?”2 (Truffaut, 1987, p. 40). Um cinema sem heróis que frequentemente recorria a flashbacks e a voz off que valorizava o acaso ao privilegiar narrativas fragmentadas, não estruturadas, não lineares, onde a câmara parecia encarnar numa caneta que escrevia sem grandes regras, definições ou imposições. Jovens realizadores que chamavam a si toda a responsabilidade pela obra fílmica, quer ao nível do trabalho de produção, quer ao nível do resultado final onde conferiam ao espectador uma enorme liberdade para interpretação. “O autor cinematográfico como coordenador e aglutinador de todos os aspectos relacionados com a feitura de um filme, isto é, o autor identificado com o realizador, entendido como responsável pelo produto cinematográfico final (que tantas vezes foi e é, e muitas outras não foi nem é, pelo menos exclusivamente).” (Ferreira, 1990, pp. 124 - 125).

Através de François Truffaut criaram a Política dos Autores onde comparavam o trabalho dum realizador ao trabalho de um escritor de um livro ou peça e se demarcavam da até aqui instituída “tradição de qualidade” como afirmou o próprio Truffaut: “Eu não acredito na coexistência pacífica da Tradição de Qualidade e cinema dos autores.” Apud (Ingram, 2004, p. 28). Através da Política dos Autores definia-se e distinguia-se um realizador pelo seu genuíno estilo próprio e independente de pressões alheias ao puro processo de criação fílmica. Cada filme da Nouvelle Vague era um filme pessoal, sentido e vivido intensamente, um filme único, livre e despido de condicionalismos. Um filme reflexo do seu autor. Nas palavras de François Truffaut: “Sou absolutamente incapaz de fazer algo que não sinta profundamente. Não gosto de filmes de simulação, detesto profundamente o snobismo e a sua irmã gémea, a impostura (…).” Apud (Rodrigues, 2005, p. 40)

É com esta postura irreverente e assumidamente disponível para alterar o rumo dos acontecimentos que, colmatando carências económicas e de cariz tecnológico, os realizadores franceses da Nouvelle Vague reinventaram novas formas de expressão cinematográfica que haveriam de contagiar as mais diversas latitudes e onde adotariam nomes como Indian New Wave, Japanese New Wave, Iranian New Wave, Australian New Wave, Romanian New Wave, Taiwan New Wave, American New Wave e Cinema Novo no Brasil e em Portugal.

Pela análise das características e contextos quer do Neo-Realismo italiano quer da Nouvelle-Vague francesa pudemos chegar à óbvia conclusão que a arte cinematográfica não depende da tecnologia para se tornar mais expressiva e mais capaz de, com sucesso, transmitir mensagens. Afirmaremos mesmo que a evolução da linguagem e estética cinematográfica ao longo dos anos não é simultânea e condizente com a evolução da técnica. Por outro prisma, é também plenamente aceitável afirmar que, apesar de nos tempos actuais a tecnologia se apresentar extremamente acessível e democratizada tal não é de forma nenhuma garante de uma qualidade expressiva do cinema nem mesmo podemos afirmar que novas capacidades tecnológicas conduzem obrigatoriamente a inovadores conteúdos. A propósito disto, Álvaro Cunhal, político, artista plástico e escritor distingue de forma clara os conceitos de conteúdo e processo formal, afirmando, “É certo que a História nos ensina que um conteúdo novo pode exprimir-se numa forma velha e um conteúdo velho numa forma nova… Mas a História ensina-nos qualquer coisa mais. Ensina-nos… que os novos processos formais que não correspondem a um novo conteúdo tendem a empobrecer e a tornar-se estéreis; e ensina-nos que um novo ideal, que começa a traduzir-se através de velhos processos formais, acaba por impor uma renovação formal verdadeiramente criadora.” (Cunhal, 2008, p. 257). Numa obra cinematográfica a capacidade de transmitir um novo conteúdo, uma nova visão, uma nova mensagem, não está pois exclusivamente alicerçada no processo formal adoptado, ou dito de outra forma, não está alicerçada nos cada vez mais inovadores e acessíveis mecanismos tecnológicos disponibilizados.

Mas o advento do digital não veio apenas proporcionar novos recursos à produção cinematográfica. A chegada do digital veio também permitir o surgimento de novas formas de ver cinema. Diversificaram-se as formas de difusão cinematográfica e a clássica sala escura, habitat natural e privilegiado do Cinema durante décadas, perdeu exclusividade. O Cinema que já surgia na televisão desde meados do século passado passou também a percorrer os canais digitais da internet e passou a ocupar um lugar de destaque numa imensa panóplia de dispositivos móveis com sempre novas e cada vez mais inovadoras e sofisticadas capacidades multimédia. Outrora contempladas exclusivamente em sessões colectivas, as imagens em movimento passaram a estar também acessíveis a uma contemplação individual.

Sobretudo para as novas gerações de espectadores a atmosfera que uma clássica escura sala de cinema potencia no momento da contemplação de uma obra cinematográfica parece claramente ter perdido importância. A escuridão da sala de cinema “que incentiva a nossa fraqueza pela fantasia” (Thomson, 2016, p. 34) sempre ao longo das décadas funcionou também como uma espécie de filtro, um notável dispositivo de segurança entre a imagética do filme e a realidade em stand-by e exposta à luz do exterior. As novas gerações de espectadores parecem confiar nas suas aparentemente evoluídas capacidades cognitivas e dividem simultaneamente a sua atenção por diversas actividades entre as quais se pode mesmo incluir o visionamento de um filme. A atmosfera que a sala escura proporciona ao visionamento de um filme não é, portanto, factor de relevo e de particular importância para a nova geração de espectadores.

Mas como poderemos definir o conceito de atmosfera? Poderá efectivamente a sala escura potenciar uma atmosfera cinematográfica? Chamaremos atmosfera ao conjunto de factores que, bem-sucedidos, proporcionam ao espectador atraentes sensações, dificilmente descritíveis, mas assentes num impacto sobretudo emocional que percorre o espectador e se prolonga muito para além do tempo de projecção do filme. A atmosfera rasga os limites do quadro, envolve o espectador, rege as suas relações com o seu próprio meio, provoca-lhe uma série de emoções que ele leva consigo e que, por um indeterminado período de tempo, continuam em estado activo. Henri Agel avança que “a atmosfera nascerá do jogo subtil das luzes e das sombras, cinzenta e triste, brilhante e luxuosa, dura e acre, conforme a história, o meio no qual ela se desenrola e a psicologia das personagens que a animam.” (Agel, 1983, p. 168). Acrescentamos que a atmosfera é característica diferenciadora dos vários filmes, tornando-os mais ou menos envolventes para o espectador e está dependente da habilidade com que foi idealizada e concretizada, tanto pela direcção de arte como pela direcção de fotografia ou mesmo pela pós-produção, onde aqui o advento do digital veio revolucionar pela enorme panóplia de possibilidades técnicas que passou a disponibilizar. A atmosfera é um elemento tipicamente afectivo que num filme, através das suas várias componentes, desperta sensações no espectador e afasta-o da indiferença. Por se enquadrar no domínio do intangível e não representável das sensações, o conceito de atmosfera fílmica não tem vindo ao longo dos anos a ser alvo de muitas reflexões, no entanto, o director de fotografia Henri Alekan avança com uma definição de atmosfera que nos parece perfeitamente adequada:

“A atmosfera é a integração no complexo plástico de elementos activos (dinâmicos) – personagens e objectos, e elementos passivos (estáticos) – lugar e cenário, num clima cuja origem é sempre psicológica. A atmosfera é o ligante da componente fílmica ou pictórica. É a atmosfera que dá o tom à obra. É através dela que o visual relembra à nossa memória – que acumulou as nossas experiências vividas, que as pendências psíquicas, que se traduzem por desconforto, tristeza, mistério, medo, angústia, felicidade, alegria, etc.” (Alekan, 1984, p. 67)

Também a investigadora Inês Gil, a propósito da atmosfera de um filme, complementa: “A atmosfera assemelha-se a um sistema de forças, sensíveis ou afectivas, resultando de um campo energético, que circula num contexto determinado a partir de um corpo ou de uma situação precisa.” (Gil, 2005, p. 141) e continua observando que “(…) pode-se definir a atmosfera como sendo um espaço mais ou menos energético, composto por forças visíveis ou invisíveis, que têm o poder de desencadear sensações e afectos nos receptores. É a natureza dessas forças, o seu ritmo e a sua relação que determinam o seu caracter.” (Gil, 2005, p. 22)

Poderemos dividir a atmosfera cinematográfica em duas formas que interagem: a atmosfera fílmica e a atmosfera espacial. Se a atmosfera fílmica se relaciona essencialmente com os elementos presentes ou emanados pela obra fílmica a atmosfera espacial relaciona-se com o local e as condições em que o filme é projectado. Enquadramos neste aspecto do espaço atmosférico, entre outros, o tamanho e a qualidade do ecrã ou da tela (no caso de projecção), a qualidade de som, o grau de escuridade da sala, o conforto das cadeiras, o cheiro que porventura se possa fazer sentir na sala, o número de espectadores presentes e o contexto da exibição (festival de cinema, sessão cineclubista, antestreia, sessão privada,…). Todas estas condições relacionadas com o local e as condições da projecção e que poderão levar o espectador a acreditar estar fora do ambiente real do seu dia-a-dia, são factores de extrema importância no processo da sua exponenciação sensorial. “É inegável que as próprias condições oferecidas pelas salas obscuras são muito propícias a esta «opiomania». O espectador instalado no seu lugar, afundado na obscuridade cúmplice, abandona-se a essa espécie de vertigem com toda a segurança, pois sente-se num estado de solidão verdadeiramente excepcional.” (Agel, 1983, p. 9).

Como já atrás escrevemos, a atmosfera cinematográfica, por não visível, reveste-se de uma grande abstracção, de contexto afectivo e por isso é difícil de ser quantificada ou mesmo qualificada. De qualquer forma, não nos poderemos esquecer que a atmosfera cinematográfica apenas existe se existir um espectador disponível para aceitá-la e dela usufruir. Um espectador distraído, frio, indiferente e, ou, imperturbável, não é arrastado pelo dinamismo envolvente e sensível da atmosfera e dificilmente intervém subjectivamente na obra ou atinge um patamar próximo da emoção. Dada a diversidade das características sensíveis de cada diferente espectador, a atmosfera cinematográfica não encontra sempre, ou pelo menos com o mesmo grau de intensidade, a mesma receptividade. Mais uma vez, as vivências e o universo inteligível de cada espectador, são factores de distinção e primordial importância para que um determinado filme envolva de uma forma muito mais intensa um e não outro espectador.

A importância dada pelos espectadores à escura sala de cinema tem vindo nos últimos anos a perder importância. Pela análise dos números disponibilizados pelo “Relatório Obercom” publicado em Maio de 2017” com o título “Ver cinema em Portugal: Uma análise sobre os novos e os tradicionais consumos”3 somos confrontados com uma realidade portuguesa que indica que o consumo de cinema na clássica sala vem decaindo desde a década de 60 não só em número de espectadores mas também em número de salas de cinema. De 437 recintos em 1960, passou-se para 168 recintos em 2014 e cerca de 26,5 milhões de admissões em 1960, passou-se para cerca de 12 milhões de admissões em 2014.

Terá o publico perdido o interesse pelo cinema? Naturalmente que não. O cinema que surgiu dotado de uma forte componente social, recorde-se a sessão pública dos Irmãos Lumière no Grand Café em Paris, terá nos últimos anos passado a ser cada vez mais encarado, já não tanto como um acto social, um momento também de convívio, mas sim como um hábito de consumo cada vez mais individualizado que se apresenta agora cada vais mais disponível em diferentes plataformas e meios de difusão. O individuo já não precisa de ir ao cinema assistir a um filme uma vez que existem inúmeras formas do próprio filme vir até si.

O mesmo estudo da Obercom indica que novas formas de acesso e visualização de cinema apresentam uma vitalidade em claro crescendo. Segundo o estudo, já em 2010, 77,3 % dos espectadores de cinema viam-no nos canais de televisão, 35,8 % por via da aquisição, aluguer ou empréstimo de DVD e já só 35,1 % nas salas de cinema comerciais. A chegada de novas soluções de visualização de filmes por videostreaming veio ainda mais agudizar a situação. Serviços como Netflix, Nplay, FOXPlay ou Amazon Prime Video disponibilizam ao consumidor um conjunto de filmes e séries mediante o pagamento de uma mensalidade. Chegaram a Portugal apenas no segundo semestre de 2015 mas, segundo dados disponibilizados no relatório da Anacom “Serviços Over-the-top (OTT)”4, em 2017 atingiam já uma quota de mercado na ordem dos 5,5% (+ 2,3 % que em 2016).

A vitalidade dos serviços de videostreaming evidencia-se uma realidade a nível mundial. Segundo números divulgados pela plataforma Netflix5 em 17 de Julho de 2017, o número (em milhares) de assinantes pagantes a nível mundial subiu de 33.892 em 30 de Junho de 2016 para 48.713 em 30 de Junho de 2017 o que representa um aumento anual de aproximadamente 44 %. A Netflix não disponibilizou números relativos à realidade portuguesa mas, segundo artigo publicado no “Jornal de Negócios”6, Yann Lafarge, Director de tecnologia da Netflix para a Europa, Medio Oriente e África afirmou que em Portugal assiste-se a um normal crescimento da plataforma e que o grande objectivo da Netflix é conseguir ao fim de 10 anos alcançar 30 % do mercado português de visionamento de filmes. No mesmo artigo é indicado que, num estudo divulgado pela Netflix, concluiu-se que o consumidor de filmes por videostreaming privilegia locais como cafés e restaurantes (56 %), aviões (44 %) e comboios (32 %) para o acto de visionamento fílmico, ou seja, o consumidor Netflix aparenta não privilegiar nenhum sítio recatado ou porventura mais silencioso e intimista para o seu visionamento de filmes.

Os números até aqui apresentados, são efectivamente números que evidenciam uma clara mudança nos hábitos de consumo cinematográfico do grande público. O entusiasmo pelo cinema não se terá atenuado muito menos desvanecido. O consumo de filmes já não se faz única e exclusivamente na clássica sala de cinema mas também e cada vez mais, através de outros meios de difusão.

4. Conclusão

A História do Cinema fez-se, e faz-se, trilhando caminhos que nos conduzem a homens e mulheres prodigiosos, audazes, criativos, desafiadores e inconformados. Bem mais de um século de cinema onde a marcha evolutiva, quer da técnica quer do pensamento, tem levado a Sétima Arte ao quotidiano de um sem número de espectadores, distribuídos pelos cinco continentes do globo terrestre. As imagens em movimento, que na sua génese surgiram órfãs do som, alcançaram mais tarde a palavra pela envolvência do sonoro, a cor, posteriormente, as três dimensões e inúmeras outras inovações capazes de seduzir o espectador ávido de um cada vez maior número de novidades. Através dos constantes avanços tecnológicos, a indústria tem vindo a procurar proporcionar aos espectadores um maior número de experiências de nível sensorial.

O cinema que pela primeira vez foi apresentado publicamente num café em Paris a um número de indivíduos incrédulo com a magia das imagens em movimento veio, no entanto, ao longo dos anos sofrendo curiosas mutações.

A chegada do cinema digital veio democratizar os meios de produção, tornou-se mais acessível produzir filmes sem que, no entanto, possamos afirmar que esta revolução tecnológica, por si só, tenha conduzido a um claro engrandecimento do cinema enquanto arte e forma expressiva e privilegiada de comunicação. É necessário e fundamental distinguir arte de ciência. O cinema, enquanto forma de expressão, manifesta-se como uma linguagem estética, sobretudo a partir do momento em que o realizador decide intervir fazendo passar para a obra a sua visão particular. A câmara regista as imagens mas com a sua devida e consciente influência. A escolha da luz, do ritmo, da cenografia, dos movimentos de câmara, dos planos e enquadramentos, a decisão de optar pela cor ou pelo preto e branco, pelo som ou pelo silêncio são aspectos da linguagem cinematográfica decididos por aquele que cria e que são depois elementos influenciadores da percepção do espectador que, posteriormente, nutrirá ou não um sentimento afectivo pela obra.

A arte é expressão. A tecnologia é, evidentemente, ciência. Conceitos que, podendo e devendo caminhar juntos, deverão em consciência ser considerados, apesar de tudo, profundamente distintos ao nível do seu conceito. Aliás, pela análise da História do Cinema, com propriedade podemos afirmar que, em momentos de crise social, económica e consequentemente de carência tecnológica, o cinema não só não definhou como, muito pelo contrário, soube com astúcia reinventar-se, tornando-se muito menos dependente da tecnologia sem perder toda a sua valia enquanto arte.

A chegada da televisão e, muito mais recentemente, das mais diversas plataformas de difusão de filmes veio disponibilizar o cinema a um crescente número de potenciais espectadores para quem a atmosfera que a sala de cinema potencia não se apresenta factor de primordial importância. O cinema tem também nos últimos anos vindo a perder uma das suas importantes características, nomeadamente a capacidade de se afirmar como uma arte socializante. Uma arte capaz de agregar à sua volta um colectivo de indivíduos que partilham em simultâneo o prazer de assistir à projecção de um filme. Ao invés o cinema tem vindo a adquirir características que o podem cada vez mais definir como vocacionado para um consumo individualizado onde o espectador assume uma série de novos poderes que passam por uma muito maior escolha, por uma capacidade de interromper e voltar a ver, adiar o visionamento para mais tarde, ver por partes, etc..

O público de cinema das últimas décadas é seguramente muito distinto do público que assistiu às primeiras exibições das chamadas imagens em movimento. O cinema amadureceu, fez-se também arte e com ele os públicos foram-se, de igual forma, desenvolvendo, alcançando novas formas de ver, de percepcionar, de apreender e de reflectir. O cinema é uma arte, uma linguagem estética, poética ou mesmo musical. Possui uma gramática, expressa ideias, visões, pensamentos e emoções. O cinema não está nem nunca esteve condenado a ficar refém da fealdade do mundo real, pode ser inventivo e pode criar, pela via da ilusão, escapatórias para universos peculiares, colectivos ou individualizados, objectivos, subjectivos ou poéticos.

Obviamente o cinema não tende a desaparecer ou mesmo definhar. Pelo contrário, vem mudando, adaptando-se à clarividência dos novos tempos e das novas gerações de espectadores.

Material suplementar
Referências
Agel, H. (1983). O cinema. Porto: Livraria Civilização Editora.
Alekan, H. (1984). Dês Lumières e dês Ombres. Paris: Lesycomore.
Bergala, A., Daney, S., & Toubiana, S. (1986). Passion, a Procura da Palavra. Em L. R. Filho (org.), Jean-Luc Godard (pp. 52 - 81). Rio de Janeiro: Livraria Taurus Editora.
Cunhal, Á. (2008). Obras Escolhidas II - 1947-1964. Lisboa: Editorial Avante.
Ferreira, C. M. (1990). Truffaut e o Cinema. Porto: Edições Afrontamento.
Fourtier, H. (1889). Manuel pratique de la lanterne de projection: description et conduite des appareils fabrication des tableaus agrandissements et fantasmagorie. Paris: A. Laverne & Co.
Gil, I. (2005). A Atmosfera no Cinema: o Caso de A Sombra do Caçador de Charles Laughton entre o Onirismo e Realismo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Ingram, R. (2004). François Truffaut - A Filmografia Completa. (P. Duncan, Ed.) Colónia: Taschen.
Rodrigues, A. (2005). A Vida Era o Écran. Em C. Portuguesa, François Truffaut - A Vida Era o Écran (pp. 10 - 51). Lisboa: Cinemateca Portuguesa.
Santos, L. G. (1981). Desregulagens: educação, planejamento e tecnologia como ferramenta social. São Paulo: Editora Brasiliense.
Thomson, D. (2016). Como ver um filme. Lisboa: Bertrand Editora.
Truffaut, F. (1987). Le Plaisir des Yeaux. Paris: Flammarion.
Notas
Notas
1 Tradução livre a partir do original em francês.
2 Tradução livre a partir do original em francês.
3 Disponível em https://tinyurl.com/ycv498z9 (consultado em 16/11/2018)
4 Disponível em https://tinyurl.com/ydbqtxcx (consultado em 16/11/2018)
5 Disponível em https://tinyurl.com/y82ugm2b (consultado em 16/11/2018)
6 Disponível em https://tinyurl.com/y8c3ppqo (consultado em 16/11/2018)
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc