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Narrativas audiovisuais sobre a Antiguidade Clássica: a representação do Imperador Augusto no cinema e na TV
Elsa Maria Carneiro Mendes
Elsa Maria Carneiro Mendes
Narrativas audiovisuais sobre a Antiguidade Clássica: a representação do Imperador Augusto no cinema e na TV
Narrativas audiovisuales sobre la Antigüedad clásica: la representación del Imperador Augusto en el cine y en la televisión
Audiovisual Narratives on Classical Antiquity: the representation of Emperor Augustus in cinema and TV
ICONO 14, Revista de comunicación y tecnologías emergentes, vol. 17, núm. 2, pp. 59-81, 2019
Asociación científica ICONO 14
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Resumen: Augusto ha sido representado de distintas maneras en la cultura occidental, pero debemos señalar que, en la gran y la pequeña pantalla (a excepción de algunas producciones más recientes), las narrativas audiovisuales al respecto son menos comunes que las dedicadas a otros líderes de Roma. A lo largo del siglo XX, la película histórica sobre la Antigüedad Clásica surgió en un marco de apropiación tardía de una cultura visual y literaria ochocentista que incorporó narrativas y figuraciones sobre Augusto en referencias anunciadoras de su aparición cinematográfica. Por una parte, las representaciones de los comienzos de la Roma imperial en la pantalla se han inclinado a enseñar una sociedad globalizada y multicultural, proyectando asimismo ideologías difusas de melting pot o pax nortemericana; por otra, se han valorizado reinvenciones que oscilan entre una deseada autenticidad, el entretenimiento y la moralización de las costumbres. Entre estas fronteras se han moldeado narrativas variadas y composiciones audiovisuales en torno a la figura histórica de Augusto, que, en nuestra opinión, deben ser reinterpretadas en el marco de los denominados Estudios de Recepción, de los Estudios Fílmicos y de la propia Historia de la Cultura.

Palabras clave:CineCine, Narrativas Audiovisuales Narrativas Audiovisuales, Roma Antigua Roma Antigua, Octaviano Octaviano, Augusto Augusto, Historia Historia.

Resumo: Augusto tem sido representado de formas diversas na cultura ocidental, mas devemos assinalar que, no grande e no pequeno ecrã (excetuando algumas produções mais recentes), as narrativas audiovisuais a seu respeito são menos comuns do que as dedicadas a outros líderes políticos de Roma. Ao longo do século XX, o filme histórico sobre a Antiguidade Clássica surgiu num quadro de apropriação tardia de uma cultura visual e literária oitocentista que incorporou narrativas e figurações sobre Augusto em referências prenunciadoras da sua aparição fílmica. Por um lado, as representações dos inícios de Roma imperial no ecrã tenderam a mostrar uma sociedade globalizada e multicultural e projetaram ideologias difusas de melting pot ou pax americana; por outro, têm-se apreciado recriações que oscilam entre uma pretendida autenticidade, o entretenimento e a moralização de costumes. Entre estas fronteiras se têm moldado variadas narrativas e composições audiovisuais em torno da figura histórica de Augusto que, em nossa opinião, devem ser reinterpretadas no quadro dos denominados Estudos de Receção, dos Estudos Fílmicos e da própria História da Cultura.

Palavras-chave: Cinema, Narrativas Audiovisuais, Roma Antiga, Octaviano, Augusto, História.

Abstract: Augustus has been represented in many ways in Western culture, but we must point out that in the big and small screen (except for some more recent productions), the audiovisual narratives about him are less common than those dedicated to other political leaders in Rome. Throughout the twentieth century, films set in Classical Antiquity emerged within a framework of late appropriation of the eighteenth century visual and literary culture, integrating narratives and images about Augustus that anticipated his filmic appearance. On one hand, representations of Imperial Rome on the screen tended to show a globalized and multicultural society and projected vague ideas of melting pot or American pax; on the other, we have seen recreations that balance between authenticity, entertainment and moralizing attitudes. Between these boundaries, various narratives and audiovisual compositions have been shaped around the historical figure of Augustus, which, in our opinion, must be reinterpreted within the framework of the so-called Studies of Reception, Film Studies and the History of Culture itself.

Keywords: Cinema, Audiovisual Narratives, Ancient Rome, Octavian, Augustus, History.

Carátula del artículo

Monográfico

Narrativas audiovisuais sobre a Antiguidade Clássica: a representação do Imperador Augusto no cinema e na TV

Narrativas audiovisuales sobre la Antigüedad clásica: la representación del Imperador Augusto en el cine y en la televisión

Audiovisual Narratives on Classical Antiquity: the representation of Emperor Augustus in cinema and TV

Elsa Maria Carneiro Mendes
(Direção-Geral da Educação), Portugal
ICONO 14, Revista de comunicación y tecnologías emergentes, vol. 17, núm. 2, pp. 59-81, 2019
Asociación científica ICONO 14

Recepción: 10 Marzo 2019

Revisado: 04 Junio 2019

Publicación: 01 Julio 2019

Para citar este artigo:

Carneiro Mendes, E. M. (2019). Narrativas audiovisuais sobre a Antiguidade Clássica: a representação do Imperador Augusto no cinema e na TV, Icono 14, 17 (2), 59-81. doi: 10.7195/ri14.v17i2.1383

1. Introdução

O nosso ponto de partida nesta reflexão é a construção de narrativas audiovisuais que têm contribuído para a receção da figura emblemática de Octávio César Augusto e do seu tempo na cultura contemporânea. Não obstante a existência de figurações anteriores, essa receção conheceu um impulso relevante na viragem do século XVIII para o século XIX (sob a égide de um conjunto de valores associados ao neoclassicismo), altura em que apropriação da personagem de César Augusto pela cultura ocidental ganhou contornos diferenciadores. A instauração de uma nova ordem modificou as representações do classicismo sob a égide de valores estéticos e morais que atualizaram um modelo de cultura, de moral e de sociedade, transformando o passado numa referência estruturante, cada vez mais edificada através da ficção (Nazaré, Rodrigues e Rodrigues: 2011). A pintura de História ofereceu todo um imaginário neste contexto, servindo a afirmação de novas narrativas colocadas ao serviço de elites que pretendiam legitimar a sua responsabilidade histórica num momento de viragem. Nesses valores podemos enquadrar, já em meados do século XVIII, trabalhos como os de Anton Mengs (1728-1779), autor muito próximo do historiador Winckelmann e dos estudos teóricos que enformaram o neoclassicismo, ou as obras de Louis Gauffier (1762-1801). Interessadas em recuperar uma ética tradicionalmente associada a Octaviano, mais tarde Augusto, as encomendas de pintura elegeram frequentemente como grandes temáticas episódios que recuperavam a tradição da propaganda octaviana, convocando a imaginação do público. Um desses excertos cruciais, de largo recorte literário, era a representação dum momento marcante do fim da república romana e do início da era imperial, sempre cristalizada no simbólico encontro entre Cleópatra e Octaviano, após Ácio, marcando a ascensão definitiva deste último ao poder. Em termos simples, o episódio condensava um longo processo político num ponto alto: a emergência do imperador e do Império no contexto de uma narrativa cultural que reconfigurava esta derrota no quadro da vitória da masculinidade e virilidade de Octávio sobre a virilidade perdida de António face a uma rainha dominatrix. E, não obstante os esforços da rainha para fundamentar a sua importância política através da presença simbólica de bustos e estátuas no espaço pictórico, são as virtudes imperiais do futuro imperador que são exaltadas, face a uma submissa Cleópatra.

Em meados do século XIX, sob a égide da Europa pós-Congresso de Viena, associando a nova ordem do domínio europeu sobre o mundo à pax romana sobre a barbárie, o pintor Jean-Léon Gérôme (1824-1904) propôs uma visão arqueológica baseada em conceitos de rigor arqueológico e etnológico com a obra A Idade de Augusto, o Nascimento de Cristo (c. de 1852-54). Numa altura em que a Europa renovava o seu imaginário de herança da cultura clássica e se arrogava a transformar-se em motor civilizador da marcha da Humanidade, oferecia-se ao público uma composição pedagógica e propagandística, num invólucro de uma lição de História Universal destinada a glorificar a imagem do 2.º Império e de Napoleão III (que pretendia uma concórdia europeia tipo pax augusta), prolongando o efeito «civilizador» protagonizado por Augusto na missão francesa para a Europa e para o mundo.

No cinema, as representações de Octaviano/Augusto tendem a recuperar e confirmar este tipo de episódios retratados na cultura e nas artes, a partir de visões literárias e pictóricas compostas em torno dos amores de Marco António e de Cleópatra, remetendo invariavelmente a história de Augusto para segundo plano. E a verdade é que, apesar da sua relativa importância nos programas curriculares nas áreas da História e da História da Cultura e das Artes, no cinema e na televisão a história do primeiro imperador romano também ocupou um lugar secundário no conjunto das representações culturais relacionadas com a receção de Roma Antiga, e a situação só se alterou com produções fímicas e televisivas muito mais recentes. E, mesmo assim, o que chegou ao cinema e televisão veio carregado de estereótipos culturais, representando-se mais a figura cultural, e menos a figura estritamente histórica (o processo contaminou a representação da maior parte das figuras históricas, lembremos, a título de exemplo, os casos de Nero, Moisés ou Cleópatra). É preciso não descurar este aspeto fundamental: o que chegou ao cinema e à televisão é o resultado de ficções e/ou mitos fundados e forjados inicialmente pela própria Cultura Clássica. Foi Plutarco quem explorou a ideia de que Cleópatra embruxou António, e foi Suetónio que levantou suspeitas sobre a sexualidade de Octaviano, apenas para citarmos dois exemplos. Assim, sob novíssimas roupagens técnicas, mas também sob este poderoso arco de narrativas culturais, o novo meio viabilizou e transmitiu ao longo do século XX a História e as suas personagens.

Configurada a moldura, passemos então ao cinema.

2. Metodologia

O presente trabalho definiu-se a partir de um corpus que se constituiu como primeira fonte de realização da investigação, e que se centrou na análise um conjunto de obras fílmicas, referenciadas na nota bibliográfica, nas quais a figura de Octávio César Augusto foi retratada. O nosso ponto de partida assenta na convicção de que o Cinema se constitui como fonte privilegiada para o conhecimento da cultura contemporânea, e, apesar das mudanças que se têm verificado na literacia cultural, visual e histórica desde os anos 80 do século XX, defendemos que existe um vasto campo de análise e de hipóteses a colocar numa área que ainda se encontra frequentemente arredada dos eixos de reflexão dos Estudos Culturais e historiográficos.

Se o corpus escolhido se constitui como primeira fonte, outras houve que se tornaram uma segunda âncora do trabalho, e que nos remetem para diversas referências e modos de apropriação de uma temática: as enunciadas por Siegfried Kracauer a partir de 1947, a propósito da relação estreita entre ambientes político-culturais e representações cinematográficas (Kracauer: 1966,3), as propostas de valorização da cultura visual e das grandes narrativas populares, incluindo as do cinema, defendidas por Umberto Eco nos anos 70 (Eco: 1989, 90-106), a releitura da imagem proposta por Susan Sontag, também desde os anos 70 (Sontag: 2005), a valorização das narrativas cinematográficas como interlocutoras da historiografia, conforme defendeu amplamente Marc Ferro a partir dos anos 70 (Ferro: 1975) e, de forma mais incisiva, Robert Rosenstone (nos anos 80), e diversos trabalhos recentes defendidos nas áreas da representação da cultura clássica na contemporaneidade, como nos casos de Mónica Cyrino (Cyrino: 2008) e Elina Pyy (Pyy: 2018); em Portugal, destacamos os diversos estudos de caso sobre receção da cultura clássica no cinema, da autoria de Nuno Simões Rodrigues (Ferreira, L., Rodrigues, P., Rodrigues, Nuno: 2011), apenas para citarmos alguns nomes, mobilizando-se diferentes teorias autorais a propósito de cada uma das obras fílmicas abordadas. Todo o trabalho implicou o recurso a obras fundamentais provenientes do campo da História da Arte e da produção artística, com as quais os fotogramas, planos e sequências fílmicas dialogam frequentemente. Deixamos também uma nota sobre os métodos de análise e exposição utilizados, lembrando que a análise fílmica não é uma ciência experimental, nem existe um método universal de análise, nem um método aplicável a todos os filmes. Entendemos a imagem fílmica como fragmento de um universo diegético e cultural que muitas vezes a transcende, veicula elementos informativos e simbólicos nem sempre separáveis e é, forçosamente, limitada e incompleta. A recriação da História e das suas personagens sedimenta-se sempre nas possibilidades técnicas, convenções e prioridades culturais de cada época, o que, em nosso entender, justifica a escolha de um corpus que aponta para um arco temporal que, mais facilmente nos permite extrair conclusões sobre a instrumentalização de determinados períodos da História e das suas figuras mais representativas.

3. Desenvolvimento
3.1. Representações de Octávio César Augusto no ecrã: do Octaviano de Charles Gaskill (1912) às primeiras produções do século XXI

As primeiras aparições de Octávio são acionadas no quadro da fórmula literária de representação dos amores de António e Cleópatra, aí se inserindo, por exemplo, dois trabalhos importantes: um de 1912 e outro de 1934, de Charles L. Gaskill e de Cecil B. DeMille, respetivamente. O filme Cleópatra, de 1912, foi produzido e protagonizado por Helen Gardner e dirigido por Charles Gaskill, com base numa peça de sucesso denominada Cléopâtre, escrita por Victorien Sardou em 1890. Não havia pretensões relacionadas com um determinado tipo de verosimilhança, mas havia uma intenção de contar uma história romântica onde imperavam excessos de gesto teatral. Representando uma figura pouco mais do que decorativa, Octávio (Mr. Paul nos créditos) tem aparições fugazes no filme, apenas se destacando o encontro final com Cleópatra, após Ácio. Este tipo de referência literária perdurou até aos anos 30, e muito depois, apesar da evolução técnica e estética absolutamente extraordinária verificada no novo meio audiovisual chamado cinema. Mas em 1934, pese embora o facto de Cecil B. DeMille se mover dentro de um esquema de padrões literários plutarquianos e shakespearianos, a verdade é que a personagem da sua versão cinematográfica reflete uma estrutura psicológica mais complexa e estudada. No filme, Octaviano (o grande Ian Keith, ator de eleição de DeMille: Tigellinus em O Sinal da Cruz, Saladino em As Cruzadas, e, mais tarde, Ramsés I, em Os Dez Mandamentos) surge na casa de Júlio César e Calpúrnia, exibindo todos os estereótipos das virtudes romanas, numa recriação cinematográfica do espaço de um peristylum de uma domus. Dispersos por vários espaços que vão sendo revelados num belo plano sequência, os convidados comentam nas costas de Calpúrnia (Gertrude Michael) as infidelidades de César e a negritude de Cleópatra, evidenciando comportamentos que remetem para preconceitos da sociedade norte-americana dos anos 30. Um longo e espetacular travelling entre colunas, plantas e estátuas levam o olhar até Brutus (Arthur Hohl), Cássio (Ian McLaren) e Casca (Edwin Maxwell), que criticam a ideia de reino que se insinua nos planos de César. Afirmam-se como defensores da República, querem continuar cidadãos e não pretendem transformar-se em súbditos de uma monarquia de tipo oriental. Na casa de César, estão também Octaviano e Marco António (Henry Wilcoxon), que entra posteriormente em cena, precedido de dois grandes cães de estimação que o associam imediatamente a um certo grau de emotividade e paixão. Trata-se de uma tradição que se radica nas visões plutarquiana e shakespeariana, que é recorrente na apresentação do seu comportamento e cujo estereótipo tem sido amplamente estudado (Grams: 2016). Tanto Octaviano como Marco António simbolizam diferentes virtudes romanas, e são rivais. Octaviano mostra-se ávido de poder, desdenha de António e discorda dos planos de César, afirmando publicamente que César está bêbado de Egipto. É um homem maduro, o que não corresponderia à realidade, e assume tiques muito próprios: ambicioso, posicionado num canto do plano, (simbolizando uma atitude de dissimulação, para assumir o poder). Critica César e Marco António porque se afastam desse projeto exclusivamente romano e de defesa da República. É essa a sua função bem marcada em sequências subsequentes, no Senado e na Batalha de Ácio. Não sendo o vilão da fita, é antes um símbolo da ambição romana que, no final, se assume em pleno no ariete que derruba a porta atrás da qual se encontra Cleópatra morta, reproduzindo o mito patriarcal que funda a cultura ocidental num momento de belíssima entronização visual da rainha para a imortalidade. O que DeMille nos mostra e o que Octaviano vê, quando arromba a porta, passa por uma figura imóvel e mantida ereta por uma força misteriosa: Cleópatra metamorfoseou-se em Ísis imortal e, não obstante percebermos que a ambição de Octaviano levará a civilização romana ao triunfo total, não é uma Cleópatra vencida que DeMille pretende subjetivamente evocar no último plano do seu filme, mas o de uma vencedora da História. Trata-se de uma hipótese colocada pela própria historiografia contemporânea de Augusto, que se mantém válida e que valoriza a rainha egípcia para a posteridade (Sales: 2010), mas não deixa de ser interessante a inserção desta hipótese numa ficção de 1934.

Não fazemos referência à época dos totalitarismos de meados do século, mas sabemos até que ponto o nazismo (e o fascismo italiano, com mais propriedade) se apropriaram do legado clássico romano, no primeiro caso inventando afinidades entre romanos e alemães, com o objetivo de sistematizar modelos de desigualdade e de repressão de uma raça dominante sobre as massas, entre outros aspetos que as polémicas teses de Robert Syme enfatizaram por volta de 1939, através da obra publicada pela Oxford University Press, The Roman Revolution. Se é verdade que tanto o nazismo como o fascismo italiano recorreram ao corpo e matéria da antiguidade como elementos de manipulação coletiva das massas, o pós-guerra, por seu lado, viu surgir uma época inteiramente diferente de proliferação de pontos de vista culturais e de novas formas de expressão que retomaram a imagem cultural e cinematográfica de Roma. Neste contexto novo, a temática de Roma Antiga foi sempre popular. (Roblin:2015)

No cinema, Cleópatra (1963), de J. Manciewicz, é uma versão esmagadora, deixou um largo legado no imaginário e, não obstante tratar-se de uma obra de ficção, parte de um grau mais assumido de consistência histórica ao nível da narrativa, dos cenários e dos figurinos (Sales:2010). Quanto à figura do primeiro imperador romano, assiste-se a uma vilanização progressiva, apresentando-se um Octaviano obsessivo, frio e frágil, física e psicologicamente (Godman:2012), optando-se por mostrar ações e argumentos que enfatizam o desejo irracional pelo poder político e religioso e uma obsessão doentia com o destino (Pyy:2018, 149). Mas a narrativa também lhe reconhece o estatuto do futuro grande magistrado supremo de Romano. No final, face à morte de Marco António, Octaviano assume rapidamente a postura de Estado, defendendo e propagando a memória do rival para a posteridade. Inesquecível, com a interpretação de Roddy McDowall a conferir contornos brilhantes à exteriorização destes aspetos, a antecipar através da palavra e da argumentação os modos do futuro imperador. Os finais dos anos 60 revelam-se extremamente ricos, sob o impacte de manifestações que visavam congregar novos públicos e sob o apelo cada vez mais forte de produção de formas culturais ligadas à sociedade massificada. Na área que nos interessa, as produções televisivas impõem-se com uma série britânica intitulada The Caesars (1968), de Derek Bennett, que incluiu vários episódios dedicados aos imperadores romanos, começando precisamente com um primeiro episódio denominado «Augustus», com Roland Culver no protagonista. De grande sucesso, a série foi quase esquecida após o aparecimento da produção de Eu, Cláudio, não obstante a personagem de Augusto representada por Culver não ficar a dever nada à que Brian Blessed representou.

Mas, do nosso ponto de vista, uma das propostas mais inesperadas e consistentes sobre Augusto provém da banda desenhada, e é de finais dos anos 60. Referimo-nos a O Túmulo Etrusco, da série Alix, de Jacques Martin, publicado entre 1967-8. Cinéfilo e fã de Cabiria, de G. Pastrone, e de Metropolis, de Fritz Lang, fã do romance Salammbô (1862), de Gustave Flaubert, Jacques Martin já tinha abordado o tema do culto de Moloch em A Ilha Maldita, nos anos 50. No caso de O Túmulo Etrusco, Martin voltou ao tema e partiu de um excerto de Suetónio para compor uma página inesperada, protagonizada pelo jovem Octávio que, no livro, é um amigo do herói Alix. A ideia de Martin foi a de partir de uma luta entre o bem, personificado em Alix e Octávio, símbolos da racionalidade romana, e o mal, personificado na seita dos bárbaros seguidores do deus Moloch, e em Brutus, o seu líder, símbolos de um passado irracional que a pax romana tinha querido erradicar. Joga-se com diversos elementos de ficção, mas há um grau de rigor histórico muito consistente. Ao introduzir um elemento mais jovem nestas temáticas, a composição de Martin revela-se absolutamente genial, afirmando um jovem Octávio, jupiteriano, solar, frágil, justo e profundamente marcado pelo destino (um dado importante na caraterização da personagem, em Cleópatra, de Mankiewicz, como já vimos) oposto à resistência à racionalidade romana e à romanização, simbolizadas no arcaico culto cartaginês. Trata-se de uma imagem do futuro imperador que influenciou de modo alternativo as gerações que consumiam avidamente banda desenhada durante os anos 70.

Nesta transição para os anos 70 afirmam-se, de facto, narrativas audiovisuais que conferem um tratamento mais estruturado e aprofundado à personagem. Numa produção shakespeariana digna de nota, António e Cleópatra (1972), de Charlton Heston, o ator John Castle representou o papel de Octaviano. Em diversos momentos, o registo procurado é bastante sóbrio e mais próximo do caráter frio e ambicioso que as produções do século XXI lhe vão conferir. Visualmente, a personagem é bastante convincente, e, pela contenção, diferencia-se sempre de todos, acabando por ser um elemento central em todas as cenas em que está presente. Os anos 70 ficaram marcados com a produção da série da BBC, Eu, Cláudio (1976), realizada por Herbert Wise. Um dos enfoques mais interessantes e inovadores desta produção baseada na obra literária de Robert Graves, foi o tratamento da relação entre Augusto (Brian Blessed) e Lívia (Siân Phillips), pretexto para estabelecer um padrão de representação que influenciou decisivamente a composição das figuras de mulheres fatais de Roma Antiga no ecrã, culminando em produções muito mais recentes, como, por exemplo, nas personagens de Átia e Servília, em Roma (2005-7), onde a crueldade no feminino se constitui como elemento fundamental para se entender toda a evolução dramática. Em Eu, Cláudio, Augusto subordina-se a Lívia, que é representada como motor de ambição política, assumindo-se uma vertente que irá perdurar.

Nos anos 90, houve uma produção intitulada Cleópatra (1999), de F. Roddam, resultante da adaptação da ficção literária de Margaret George,The Memoirs of Cleopatra. Octaviano, cujo papel é desempenhado pelo conhecido ator inglês Rupert Graves, afirma-se em intervenções curtas, no senado romano (para defender Júlio César), ou junto de Cleópatra, revelando-se sarcástico. Enfatiza-se a sua indisfarçável vontade de poder, o seu desprezo por Cleópatra e a sua vertente de intriguista de corredor. Em outras intervenções no Senado sublinha-se o sábio aproveitamento político que Octaviano fez do caso amoroso de Marco António com Cleópatra, usando a «traição» de Marco António como uma verdadeira catapulta para o poder. A sequência final introduz algumas variantes curiosas e o desempenho de Rupert Graves é bastante convincente, mas trata-se de uma visão algo contaminada por estereótipos norte-americanos dos anos 90: o outro mediterrânico é sempre sul-americanizado, e revelador da projeção cultural norte-americana em relação ao mundo latino-americano.

Chegamos ao século XXI sob o efeito causado pelo aparecimento do filme O Gladiador (2000), realizado por Ridley Scott, e é fundamental enquadrarmos esse reaparecimento de um ponto de vista de recolha e fusão de fontes que estiveram na origem do argumento (Elliot: 2015, 22). É face a esse enquadramento que podemos perceber melhor o enfoque sobre Octávio César Augusto, procurando dar a entender os motivos da personagem. Tal é o caso de Imperium: Augustus (2003) (RAI), de Roger Young, uma produção ambiciosa que faz um verdadeiro insight na personagem (recuperando aspetos do romance de Alan Massie, escrito em 1986). Octaviano e Augusto foram representados por Benjamin Sadler e Peter O’Toole, respetivamente. O realizador usou recorrentemente o flashback, como recurso que permite humanizar a personagem, sendo através dessa estratégia que o velho imperador vai contando e justificando as suas ações no passado. No princípio e no fim do filme, o Imperador interpela os que o rodeiam e no final, o próprio público: Qual foi o meu papel na comédia da vida? Fui justo? É uma espécie de repto, um convite para que o julguem. A humanização das figuras públicas (que as massas entendem cada vez menos?) tem sido uma constante nos últimos tempos, e tem resultado em vários biópicos sobre figuras mais recentes, recordando-nos um dado muito concreto: o filme histórico tem sempre uma agenda política a enquadrá-lo (Elliot: 2015, 21). Lembro A Rainha (2006), O Discurso do Rei (2010), A Dama de Ferro (2011). No caso de Imperium: Augustus, uma das estratégias dessa humanização é a introdução do círculo de amizades de Octaviano, Marco Vipsânio Agripa e Caio Mecenas, insistindo-se numa versão de uma história de amigos, que poderia aproximar a narrativa de um público mais jovem, e até captar outros públicos. E, se deixarmos de parte a produção Empire (ABC, 2005), de J. Gray e K. Manners, obra bastante mais fantasiosa, não obstante o casting muito interessante (Colm Feore, Santiago Cabrera, Emily Blunt, Vincent Regan), o grande enfoque em Octávio e na sua época coube a uma produção televisiva a que iremos seguidamente fazer referência.

3.2. O primeiro grande retrato contemporâneo de Octávio César Augusto: uma narrativa poderosa nas mãos da HBO: Roma I e II (2005-7)

O aparecimento de Roma, I e II, de John Milius, William J. MacDonald, e Bruno Heller, série realizada por diversos autores, representa, em nosso entendimento, uma viragem profunda no que respeita ao poder crescente das grandes narrativas audiovisuais sobre as audiências. Produzida pela HBO, a série apareceu nas televisões em 2005 (1.ª série) e 2007 (2.ª série). A série foi filmada nos estúdios italianos da Cinecittà, e contou com a colaboração de um consultor histórico graduado em História Antiga pela Universidade de Cambridge, Johnattan Stamp. A referência de partida da série Roma foi O Gladiador, e a série pretendia transformar a imagem tradicional e ainda algo intocável da Roma que vemos em O Gladiador numa realidade menos heroica. Desvios históricos, manipulação da linha temporal e seleção de personagens foram o resultado de opções claras dos autores, que, em muitos aspetos, mantiveram convenções consensualmente aceites: por exemplo, para representar a separação de classes ou grupos sociais através da linguagem, os romanos da classe patrícia falam com um sotaque chique londrino, a plebe utiliza a entoação das classes médias e trabalhadoras, e os escravos falam todos com sotaque estrangeiro. Roma atualizou estas convenções (Roblin:2015), mas apostou novamente neste e noutros paradigmas bem-sucedidos, e ampliou e aprofundou o tempo em que Augusto viveu, com diversos elementos de contexto, com a introdução de mais personagens ficcionadas, e através da representação de um conjunto de transformações históricas, sociais e culturais vividas em Roma, e anteriormente nunca representadas no seu conjunto em cinema, e mais ainda, em televisão.

Não estamos perante uma grande narrativa de tipo tradicional, antes perante uma sucessão de pequenas narrativas episódicas. Em Eu, Cláudio, tudo rodava à volta do palácio e de uma família disfuncional, e o imperador Augusto era dominado por Lívia. Em Roma, Octaviano é acompanhado ao longo da 1.ª série por dois militares, Lucius Vorenus (Kevin McKidd) e Titus Pullo (Ray Stevenson). Recriando-se uma narrativa paralela sobre dois plebeus de Roma, assume-se um contraste entre o lado trágico e moral, simbolizado pelo primeiro, e o lado bruto e simples, simbolizado pelo segundo. A determinada altura, Pullo parece refletir os excessos de Marco António, Vorenus parece refletir a contenção de Octaviano. Mais tarde a roda inverte-se, Vorenus irá associar-se a Marco António, acreditando defender velhos valores, e Pullo, que faz tábua rasa do passado, incorpora melhor os novos compromissos e a nova ordem proposta por Octaviano. Só Octaviano e Pullo sobrevivem, adaptando-se e movendo-se decisivamente para a nova ordem imperial em Roma. Deste modo, Roma reservou para Octaviano um estatuto psicológico que não estava presente nos filmes anteriores, e, apesar de a personagem não estar no eixo da série, acaba por se tratar da ficção mais completa sobre a sua ascensão ao poder, terminando com a derrota de Cleópatra. Octaviano aparece, em criança, como estudante de História, Política, Literatura e Poesia clássicas. Desenvolve um claro e calculista instinto político, entra em conflito com a mãe, Átia, que parece não suportar livros, e não percebe o filho. Recriada pelo ator britânico Simon Woods, a figura de Octaviano torna-se um poço de desapego, calculismo, sadismo, e assim será julgado por Cleópatra, no encontro final com a rainha egípcia. A construção psicológica da personagem leva-o a tomar progressivamente o controlo da família (da mãe Átia, da irmã Octávia, e da mulher Lívia), e depois, do legado de César e da República. Combate o lado devorador feminino, derrota-o e torna-se um símbolo de um certo tipo de cultura masculina, reforçando o mito fundador patriarcal do Ocidente. Há uma atualização narrativa em termos de violência explícita e de revelação de comportamentos sexuais, atestando, quer o recurso a fontes que não eram favoráveis ao imperador Augusto, quer uma visão ampliada sobre a figura e o papel sexual de Lívia e de outras figuras femininas representadas (oscilando entre comportamentos em que a mulher é subalternizada e outros em que a mulher é dominante), e que se prende com a alteração de códigos morais e comportamentos emergentes no século XXI. Esta projeção de preocupações contemporâneas não é nova (lembremos o famoso O Sinal da Cruz (1932), de Cecil B.DeMille, e tantos outros exemplos de representação de liberdades sexuais em filmografias da época pre-code, mas o princípio do século XXI congrega um conjunto de novas expectativas sobre a liberdade e o papel da mulher, e o filão terá continuidade noutros filmes passados na Antiguidade Clássica, embora sobre outras temáticas: 300 (2006), de Zack Snyder, as temporadas de Espártaco (2010), da Starz, 300: Ascensão do Império (2014), de Noam Murro, Pompeia (2014), de Paul W. S. Anderson. Também a forma como é retratada a passagem do regime político republicano para o regime imperial merece atenção: paira sobre a representação desta transformação política o eterno receio contemporâneo da ameaça sobre valores «democráticos», «anacronicamente» presentes nos acesos debates dum Senado que sofre uma erosão progressiva às mãos de Octaviano. Esse processo está magistralmente representado. O medo da radicalização também paira sobre o cosmopolitismo social da Roma republicana mais ou menos pan…globalizada onde Octaviano se move, entre a representação dos modos de vida aristocráticos do Palatino, e as vivências populares, no Aventino. Este é outro aspeto interessantíssimo. Fundamentada na informação historiográfica e arqueológica disponível, um dos aspetos mais conseguidos da série é, por exemplo, a forma como há referências a uma multiplicidade de cultos pagãos (Stanley: 2005) ao tempo de Octaviano, que Roma captou e reproduziu. Os criadores da série mostram-nos, não uma religião condenada, mas uma religião com dinâmicas muito ricas, profundamente ligadas à vida privada e pública dos romanos e, principalmente, mostram-nos uma sociedade aberta à irrupção das religiões reveladas, dos cultos orientais e de mistério. Esse é um dos aspetos mais interessantes da narrativa audiovisual de Roma, embora a série seja menos esclarecedora no que respeita a fazer-se justiça ao papel de Octaviano na reorganização da religião pública romana.

Vale a pena explorar melhor este aspeto, porque foi intenção explícita dos autores trazer à luz uma Roma mais pagã e menos judaico-cristã.(Roblin:2015) Em Roma estamos longe da visão da Roma de Trimalquião, em Fellini-Satyricon, de Fellini, mas somos surpreendidos com uma Roma de sincretismos e de restaurações religiosas. O regresso a formas de cultos tradicionais e à proliferação religiosa atesta-se no simples facto de Augusto ter restaurado cerca de oitenta templos. Essa dinâmica foi também acompanhada da restauração de sacerdócios (o revigoramento dado aos Irmãos Arvais (Arvales), ligados ao patriciado, às Lupercais, rituais ligados à Ordem Equestre, ao augúrio de Salus, ao restauro dos livros sibilinos, ao reagrupamento das Vestais, à reedificação dos templos dos Lares, às reformas de colégios, entre outras medidas, tudo isso atesta um extraordinário revivalismo de cultos tradicionais (Bloch:1963). Suetónio atesta estes factos (Suetónio:1973), referindo o aumento das prerrogativas das Vestais e dos padres, e o restabelecimento de outras cerimónias antigas, como o augúrio da Salvação, o flaminato de Júpiter, as festas lupercais e os compitais. Octaviano reforçou, portanto, os antigos cultos romanos, e também reforçou a concentração de poder religioso na sua pessoa. Era sacerdote, era pontífice aquando da morte de Júlio César, sumo pontífice por morte de Lépido. Era áugure, irmão arval, padre de Titius. Nele se concentrou progressivamente toda uma complexa e ancestral teologia dos Romanos, que ele assumidamente revitalizou (Cazenave e Auget: 1995, 94). Augusto interveio na esfera religiosa, porque era ao Estado Romano, que era uma comunidade de cidadãos, que cabia definir uma religião oficial e pública. O exercício dos cargos religiosos era público e fazia-se no âmbito de uma magistratura. Augusto tinha uma noção clara do que pretendia para a esfera do oficial, público e externo, foi um acérrimo defensor das tradições romanas e colocou-se sempre no papel de defensor da república. No dizer de Pierre Grimal, a ambição de Augusto salvou a civilização romana (Grimal:1993, 51). Mas, enquanto o tempo de Augusto pretendeu ser uma reação contra o luxo e retomou virtudes ancestrais, no período seguinte assiste-se à invasão definitiva de Roma pela civilização oriental (Grimal:1981, 102). Em volta de um Mediterrâneo percorrido por numerosas rotas comerciais, os contactos espirituais floresceram. Com o crescimento de Roma e da livre circulação de bens e de pessoas, os cultos viajavam mais ou menos livremente. Isto é extremamente importante, porque é do Oriente que chegam as religiões reveladas, cultos organizados em dogmas e rituais de iniciação que transformam os seguidores ou iniciados em eleitos (Grimal:1993,77). Eram cultos que tinham seduzido principalmente gente humilde a quem Roma não oferecia grandes esperanças (o filme expõe bem esse aspeto), mas também burgueses de Roma e de outras partes do Império. Roma viu-se cheia de semigregos, cortesãs de trajes exóticos, gente com trajes associados aos cultos de Mitra ou de Cybele. Como disse Raymond Bloch, «é do Oriente que vêm os rejuvenescimentos; do Oriente que veio a voz sibilina; do Oriente que serão, em breve, difundidas as parábolas» (Grimal:1981,180). Perante esse impacto, a religião pública romana vai ser fortemente abalada a partir deste período. É isto que caracteriza a época: restauração religiosa, renovação de sacerdócios e preferência por certos cultos novos que se transformavam à medida que viajam no Império.

E é isso que o filme mostra.

O culto imperial, que Augusto ensaiou ao organizar funerais públicos de Estado por morte de Júlio César, o culto imperial, dizíamos, implantou-se bem porque existiam cada vez mais cultos orientais de peso em Roma e, como consequência disso, as populações estavam aptas a assimilar a ideia de divinização do imperador. Pouco depois da morte de César, César foi declarado Divus e Octaviano passou imediatamente a intitular-se Caius Divi Filius, o filho do divo. Assimilando influências orientais, Augusto conseguiu com estas práticas transformar uma comunidade de cidadãos numa comunidade de súbditos. O culto imperial representava o desenvolvimento do que era uma prática essencialmente oriental, e iniciou-se precisamente nas províncias orientais do Império. Tibério propagou o culto imperial, mas tanto Augusto como Tibério foram adeptos do culto imperial dentro de um quadro de um conjunto de práticas razoáveis (Shotter:2008,85). A convivência em tolerância foi a própria essência do politeísmo. Parece poder falar-se, por um lado, de proliferação e de equilíbrio religioso durante todo este período, mas, por outro, à medida que os novos cultos começaram a ameaçar a própria religião pública do Estado, avolumou-se uma desconfiança progressiva em relação aos mesmos.

No episódio 1 da 2.ª série de Roma, o aspeto religioso é valorizado, dado que assistimos a uma montagem em que se sobrepõem dois funerais, o do culto público (os funerais de Júlio César, organizados por Octaviano) e o do culto privado. Em Roma, o enterro dos mortos era um dever sagrado (Grimal: 1981,37), e recusar a sepultura a um cadáver era expor o cadáver e toda a família aos lémures. A dimensão de sofrimento autêntico vivido ao nível do culto privado, onde se vê a defunta com a moeda na boca e a ser transportada para uma zona fora da cidade, o pomoerium, é diluída no impacto e na dimensão de aparato do culto público. Não se percebe bem a importância da diferença entre a esfera do culto público e do culto privado1, mas a encenação de ambos os funerais é bastante credível. O episódio 7 volta a mostrar o culto público dos Romanos com a reconstituição das Festas de Pomona, deusa dos frutos e colheitas, que estavam incluídas no calendário romano e se celebravam no primeiro de novembro, com a presença dos mais altos magistrados. No filme vêem-se os ainda triúnviros Octaviano e Marco António a acompanhar o desfile, com as famílias respetivas, respeitando os cultos públicos.

Relativamente à penetração dos cultos orientais, a série traz apontamentos interessantes.

Já antes do Império tinha havido infiltrações dos cultos orientais de Magna Mater ou Cybele, de Dionísios e de Ísis, e houve, simultaneamente, tolerância e receios relativamente aos cultos estrangeiros. Veja-se o exemplo de um culto egípcio introduzido no tempo de Sila (Grimal:1993,77): o culto de Ísis. Os escravos libertos e, sobretudo, as escravas libertas aderiram-lhe rapidamente. Augusto, Agripa e Tibério promulgaram medidas contra este culto (Bloch:1964,383). Calígula, mais liberal em relação aos cultos orientais, retomou o culto e no seu tempo multiplicou-se o número das capelas dedicadas a Ísis (Grimal:1993,52). Na série, o público é confrontado com essa multiplicidade de cultos: no episódio 4 reconstitui-se um pequeno apontamento sobre o culto de Ísis, apresentado como um culto da deusa, e acompanhado, no filme, por uma ladainha que apresenta semelhanças com a recitação do Ave-maria. Permitido a partir da época de Calígula, o culto já existia anteriormente, embora fosse perseguido. A adoração de Ísis aparece documentada, por exemplo, no Satyricon, de Petrónio, da época de Nero (Petrónio: 2005, 25). No filme Roma, a personagem Servília, mãe de Brutus e amante de Júlio César, presta culto a Ísis de forma discreta. Na época de Augusto, Suetónio faz também referência aos padres de Cybele (Suetónio:1973, 91). Cláudio permitiu o avanço do culto de Átis-Cybele, enquanto Nero deu continuidade aos cultos egípcios e mostrou curiosidade pelo dramático culto de Mitra que, em finais do século I d.C., estava generalizado no Império (Grimal:1993, 78). Diocleciano foi iniciado no culto de Mitra. Na digressão egípcia, Augusto recusou visitar os lugares de culto ao boi Ápis (Suetónio:1973,103). Tibério também proibiu ritos estrangeiros egípcios e judaicos e, sabendo-se que na transição para o Império e no próprio Império, adivinhos de toda a espécie dominavam a vida religiosa quotidiana (Grimal:1993,80), Tibério chegou a querer banir os astrólogos (Suetónio:1973,112).

Em Roma I e II assiste-se à representação um tanto livre de um culto de Cybele. Deusa de origem frígia, o seu culto foi introduzido oficialmente em 204 A.C, mas a sua proliferação terá sido posterior à época de Augusto. J. Stamp, um dos autores da série, consciente do anacronismo, justificou a liberdade de fazer representar um culto de Cybele no tempo de Augusto. O ídolo de Cybele era uma pedra negra. Era um dos cultos mais violentos, na medida em que os sacerdotes eram eunucos e as sacerdotizas prostitutas sagradas, e o culto comemorava com rituais de sangue e de autoflagelação a paixão e ressurreição de Átis na Páscoa. Dada a sua importância crescente no comportamento das populações, as festividades de Cybele acabaram por ser definidas e incluídas no calendário romano. No filme vemos um cortejo e um sacrifício de um touro, e, num episódio da 2.ª série um pedinte faz uma jura pela pedra negra sagrada, atestando que no tempo da transição para o Império, o novo culto religioso se estava a espalhar pelos grupos mais desfavorecidos socialmente.

Esta proliferação livre de forças culturais de dispersão da unidade romana (e outros elementos que não elegemos para estas notas) permite-nos compreender de forma mais cabal a chegada de Octaviano ao poder e a dimensão da sua intervenção no ato de instaurar o que ele próprio nomeou de nova ordem, a restauração de um ponto de equilíbrio que acabasse com o caos que a morte de Júlio César tinha representado para Roma.

4. Conclusões

Em síntese, reciclamos continuamente as imagens do passado em função do nosso tempo e do nosso quotidiano, e os filmes só podem partir do presente. As narrativas audiovisuais (TV e cinema) têm continuamente recriado a História Clássica e os seus protagonistas ao modo dos ecletismos oitocentistas, deste modo credibilizando esta linguagem narrativa, para que ela chegue num invólucro reconhecível e cada vez mais eficaz ao público. Usar e recriar a tradição foi um meio de credibilização das narrativas audiovisuais ao longo de todo o século XX, e, quando começamos a estudar melhor algumas produções, a revisão do processo oferece-nos imensas surpresas. Surpreendemo-nos, por exemplo, quando lemos que Merian C. Cooper visitou as imediações do Vesúvio antes de filmar The Last days of Pompeii (1935), ou que para a realização de The King of Kings (1927), de DeMille enviou para a Terra Santa representantes do estúdio para executarem esboços da arquitetura do lugar para o storyboard, ou que a equipa técnica de Cleópatra (1933), de DeMille, se deslocou ao Egipto para recolher informações, in loco, das então recentes descobertas de Howard Carter. Se, para o cinema norte-americano da primeira metade do século XX, é verdade que a História nunca passou de um meio ao serviço de uma indústria que tinha outros objetivos mais palpáveis a atingir, o que nos interessa sublinhar é que a apropriação mais interessante da História e dos seus personagens é a que a cultura dela faz, aquela que é modelada pela experiência transitória de cada época, e que é articulada através de estratégias e técnicas narrativas que tanto mergulham em produções culturais anteriores, como acompanham e inovam modos de representação e de receção. Sempre relegado para um plano secundário, o caso Augusto é sintomático deste estranho processo receção do classicismo na cultura popular, e foi preciso esperar pelo século XXI para ver a personagem devidamente representada, quer no cinema, quer numa série televisiva. Além da tradicional construção que envolveu a personagem histórica ao nível de discursos anteriores ao cinema, o que pretendemos sublinhar é a novidade que a narrativa cinematográfica lhe trouxe de um ponto de vista historiográfico, particularmente com a série Roma.

Roma elevou decisivamente os padrões do consumo televisivo. Pela amostra que fizemos, julgamos que a série atesta bem o grau de detalhes ancorados em informação histórica que é possível representar, a diversidade de sobreposição de registos e realidades através da mise-en-scène e da montagem cinematográfica, em suma, a eficácia e peso crescentes de uma narrativa audiovisual na construção do conhecimento histórico sobre épocas e personagens, neste caso concreto do primeiro imperador romano. Neste contexto, o contributo de Roma é notável. Por um lado, pelo enfoque inovador em torno de determinados movimentos sociais – como, por exemplo, os cultos religiosos – projetando no passado os receios atuais sobre a tolerância ou não relativas a práticas religiosas. Roma captou muito bem a proliferação religiosa, mostrando as dinâmicas da convivência da religião politeísta com o Estado Romano, e a abertura efémera da sociedade romana em relação à irrupção de religiões reveladas, dos cultos orientais e de mistério. Por outro lado, porque embora seja basicamente uma obra conservadora e herdeira de um longo filão de experiências no género, a narrativa surpreende enquanto instrumento específico de valorização e desmistificação de um dos grandes protagonistas da História. Dito de outra forma, à luz do início do século XXI, parece-nos que é obrigatório ver e utilizar este filme, e/ou excertos dele, para conhecermos e compreendermos melhor a figura de Augusto à luz do nosso tempo, tal como é preciso aprender a recorrer mais e mais às diversas narrativas literárias, audiovisuais e pictóricas de que a figura foi alvo, reinterpretando-as no quadro dos denominados Estudos de Receção, dos Estudos Fílmicos e da própria História da Cultura. Se, no fundamental, a imagem que temos de Roma não mudou muito com a série, a verdade é que não estamos apenas perante uma sucessão histórias já contadas, estamos perante um tipo de produção audiovisual que conseguiu trazer novas hipóteses à forma como o nosso imaginário se continua a projetar na Roma Antiga. Tratando-se de um processo dinâmico, e não faltando certamente futuras produções no mesmo âmbito, a escrita da História, parece-nos, já não pode deixar de passar por aqui.

E a HBO soube fazer render o desafio. No ano em que estreava Roma II, 2007, o estúdio já estava a desenvolver um outro projeto impressionante: a adaptação para televisão da obra literária de G.R.R. Martin, A Song of Ice and Fire, sob o nome de Game of Thrones

Material suplementario
Referencias
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Notas
Notas
1 Os criadores da série pretendiam incluir as filmagens de uma procissão, uma Lupercalia, mas a produção era cara, e não se fez. Cfr. http://www.beliefnet.com/Entertainment/TV/The-Pagans-Of-Rome.aspx?p=2
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